sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A Folha

Segurou-se com as derradeiras forças ao ramo que a mantinha suspensa, mas inevitavelmente uma leve brisa outonal foi suficiente para a arrancar e levar pelo ar.

Esta manhã tinha acordado com o sobressalto da consciência súbita que cada segundo passado significava menos tempo para ela chegar. Ela, essa personagem esperada, mas sempre surpresa. A Morte. Cada segundo passado significa menos tempo para ela chegar, nesse dia que será o dia da morte dela, o seu dia que chegará um dia. Porque as folhas também morrem, como as pessoas. Sacodem-nas o vento num dia de sua velhice, até as arrancar do ramo a que se agarram e que as alimenta, se antes mãos humanas ou desumanas as não arrancaram já do ramo, ainda vivas e verdes e jovens, espirrando seiva como sangue e lágrimas, que escorre viva pela mão impune assassina.

E esvoaça pelo ar a folha, cruza-se com corvos e pardais, pousa num telhado por segundos de meditação para logo de seguida ser atirada ao chão, pisada e com sorte juntar-se às irmãs, formando húmus que alimentará árvores como a sua mãe, que de novo darão mais folhas, verdes, como ela já foi e em conjunto serão de novo árvore. O ciclo repetir-se-á enquanto distraídos passam os homens pela vida e pelas árvores.

Mas esta folha teve outra sorte. Foi parar a outras mãos. Umas mãos de dedos esguios delgados, que buscavam ervas para um chá. Ervas, folhas e plantas. Variadas. Para um chá especial. De aliança entre os homens. Requintado e convidativo queria-se o chá. Seleccionava ervas ele, de entre todas excluindo as daninhas que não deixam crescer as outras e dão um sabor amargo ao chá, contando-se até que o torna venenoso, algumas.

Cuidadosamente, ele pegou na folha. Naquela folha. Tinha uma forma estranha, e apesar de morta, havia nela ainda vida, vida para se transmitir, para passar a outras folhas, a árvores, a homens e a mulheres.

Levou-a para casa com cuidado com as mãos em concha, como que para evitar que os resquícios de vida que ele sentia nela não se escapulissem definitivamente, e protegeu-a do vento e dos pés dos homens.

Na chaleira a água já fervia. Cuidadosamente esmagou parte da folha e misturou-a com as outras trazidas pelos outros. Verteu a água fervida sobre a mistura num bule que de imediato exalou um odor único que encheu a sala e se espalhou pelo mundo num rasto com caminho e destino desconhecido.

O chá estava pronto.
ANA PEREIRA

3 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pelo blog, vou add ao meu

Nilson Barcelli disse...

Normalmente, estes projectos acabam ao fim de pouco tempo.
Independentemente da sua qualidade...
Ou então reduzem-se à pessoa mais activa, tornando-se gradualmente um blogue individual.
Desejo, de qualquer forma, que este seja a excepção e nos continue a dar por muito tempo textos tão bons ou melhores como os que já publicaram.
Beijinhos e abraços.

Paula Pinto disse...

Acho que é a primeira vez que comento aqui. Desde o início que tenho tomado o "chá das 5" convosco.
Gosto muito de chá e não tenho hora certa para o tomar. Gosto de todos os chás: aromáticos, medicinais, chá preto, chá verde, chá branco, chá vermelho...enfim. Acho que gosto mesmo de todos os chás. Se fosse um pouco mais redondinha, poderia ser uma chaleira! :)

Não gosto especialmente do tema da morte. Talvez porque já deixou de ser "apenas" uma temática.
Prefiro pensar e ver nas folhas secas e nas sementes mirradas, o tempo de espera até ao renascer de uma nova (outra) vida. Nada morre. Tudo renasce noutra forma.
O sol não morre no horizonte, nasce no outro lado do mundo;
O Verão não morre no frio do Inverno, prepara o seu recomeço;

Tudo se transforma, é certo. Mas a vencedora é sempre a VIDA.

Uma longa e perfumada vida ao "Chá das 5", com folhinhas secas, mas não mortas, pois do que estamos sedentos (todos) é de vida.

Beijinho e parabéns aos autores pela inciativa conjunta

Ana Paula Pinto

 
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