sexta-feira, 14 de novembro de 2008

VIDAS...

“Ninguém contava anedotas como ele”, dizem-me os “rapazes” da sua idade, recordando intermináveis tardes de sábado num banco da Praça ou na beira do Cais da Pedra, às tainhas. Todavia, eu nunca vi nele um contador de anedotas, mas antes um contador de histórias. A sua capacidade de improvisação, aliada a uma imaginação transbordante, transformava a anedota mais corriqueira nisso mesmo, uma deliciosa história. Com a inerente graça, é certo, mas sobretudo com inteligência, jogando com as palavras, sem concessões à grosseria ou ao riso fácil.

Falo de alguém que conheço muito bem e com quem tenho privado (literalmente) ao longo de toda a minha existência. Falo do meu pai. Nessa relação de afectos que ultrapassa o normal entendimento das coisas, bebi eu uma grande fatia daquilo que sou hoje. É impossível não me rever nele nos meus gestos e atitudes, na minha postura perante mim e os outros.

Vem isto a propósito duma história que o meu pai me contou um destes dias. Não apenas mais uma, mas uma daquelas que me fez sorrir, pensando no quanto o acaso determina inflexões na nossa vida, as quais acabam por ser determinantes naquilo que fomos, naquilo que somos.

Quando assentou praça em Estremoz, após a recruta, era chegada a altura de determinar as especialidades de cada um. Formados na parada, os soldados iam respondendo às solicitações do Sargento. “ – Quem percebe de carpintaria?”, ou “ – Quem trabalha em padarias?”, ou ainda “ – Quem tem carta de condução?”, e por aí fora. À medida que a Companhia ia sendo “desmembrada”, cogitava o meu pai com os seus botões o que lhe haveria de cair em sorte. As perguntas sucediam-se, até que se ouviu: “ – Quem sabe escrever à máquina?”.

Não sendo escriturário de profissão, a verdade é que o meu pai tinha tirado o Curso de Dactilografia e “dava uns toques”. Porém, estranhamente, permaneceu mudo e quedo, enquanto uma campainha soava no seu cérebro. “ – Ai sabes escrever à máquina? Então vais carregar o piano para o Gabinete do Comandante”, pensou, fazendo fé nas inúmeras histórias mirabolantes que se contavam em torno destas ocasiões. E é aqui que entra o amigo Baeta.

Alto e desengonçado, o Baeta conhecia muito bem as habilitações do meu pai. “ - Macedo? Oh Macedo? Então tu não sabes escrever à máquina?”, disse-lhe, baixinho, no meio da formatura. “ - Cala-te, pá!”, advertiu o meu pai entre dentes. A voz do sargento fez-se ouvir de novo: “ - Quem sabe escrever à máquina?” E o Baeta já irritado: “ – Macedo, não me disseste que tinhas o Curso de Dactilografia?”. Desta vez o meu pai nem respondeu, sentindo os olhos do Sargento cravados nos dele. Fez-se um compasso de espera e o Sargento, desviando o olhar, com um certo desencanto na voz que mais parecia confirmar as convicções do meu pai, repetiu pela última vez: “ – Então não há mesmo ninguém que saiba escrever à máquina?”

O Baeta não resistiu mais. Esticou a sua comprida perna, encostou a bota ao traseiro do meu pai e, com um sacão enérgico, obrigou-o a dar três passos em frente. Agora não havia nada a fazer. Era esperar pelo veredicto. O Sargento saudou com entusiasmo o aparecimento do “candidato”, - “óptimo, óptimo…”, disse - e colocou o meu pai de parte, à sua guarda pessoal.

Final da história: O meu pai cumpriu o resto do serviço militar na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, como… Escriturário! “Éramos os doutores da tropa”, recorda ele com nostalgia e um indesmentível prazer. “E devo isso ao Baeta”, reconhece.

JOAQUIM MARGARIDO

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